Opinião: Gustavo Maia

27 de novembro de 2010

"O inimigo agora é outro?"


Capas dos principais jornais do Rio: O Globo, Extra, O Dia, O Fluminense (edições de  27/11/10) e Meia Hora (edição de 26/11/10)

Uma oportunidade única, o traficante não pode perder essa! – garante o comentarista de segurança pública e ex-capitão do BOPE. É que a polícia oferece segurança aos bandidos do Alemão que se entregarem na principal rua do Complexo – a TV mostra no mapa o endereço. É bem didático.

“Estamos chegando aos momentos finais”, desfecha o comandante-geral da PM. A população parece mesmo confiar num final feliz – ao menos é o que mostra a imprensa. A torcida que toma conta da cidade não é a do Fluminense às vésperas da possível conquista do campeonato brasileiro, mas a que acredita numa cidade pacificada, enfim.

Das capas dos jornais transbordam imagens clássicas: pedidos de paz em barrigas grávidas e testas de meninos, bandeiras brancas tremulando nas mãos de homens. Aplausos – mais aplausos – aos militares heróis nacionais. Na luta do bem contra o mal, o povo já escolheu de que lado ficar – é o que dizem na TV os repórteres vestidos com coletes de guerra.

A cobertura do cerco militar ao complexo do Alemão e à Vila Cruzeiro, ocupada, já dura uma semana. O apoio de parcelas das Forças Armadas (veículos e armamento pesados, soldados viris) gera imagens que enchem os olhos dos fotógrafos e cinegrafistas. É a resposta do Estado à sequencia de ataques incendiários por toda a cidade e pontos isolados da região metropolitana. É um momento histórico, dizem os especialistas em segurança na TV. “É uma operação decisiva para o Rio de Janeiro!”, o comentarista está tão entusiasmado que se oferece para voltar à polícia.

Tamanha incursão militar não se vê desde a época da conhecida política de enfrentamento, que vigorou até o Rio de Janeiro se tornar olímpico. (Talvez a matança promovida pelo Estado nas favelas fosse inadmissível numa cidade que passava, finalmente, a ter destaque internacional não apenas pela ação da polícia.)

Mas, apesar do elevado número de mortos nos últimos dias, o que a imprensa mostra pouco lembra a antiga estratégia do governo Sérgio Cabral. Os próprios corpos das vítimas não aparecem mais. Também não se fala agora em caveirões, mas em blindados da polícia. Os violentos protestos dos parentes das vítimas deram lugar ao apoio às forças armadas. A caçada dos helicópteros policiais a traficantes a correr pelas matas foram trocadas pela observação inteligente e formulação de estratégias que garantem aos bandidos a opção de se render, naquele endereço que a televisão lembra a toda hora. (Aliás, a apresentadora ressalta que os bandidos presos são imediatamente encaminhados ao atendimento médico.)

Toda essa mudança é atribuída à instalação das unidades de polícia pacificadora em determinadas comunidades. As UPP’s caíram desde cedo nas graças da imprensa e viraram o grande trunfo na reeleição do governador. Repete-se nas recentes operações na região da Penha que foram as unidades o motivo dos ataques dos bandidos, acuados, ao Rio. As ordens para as ações criminosas partiriam de velhos chefões do tráfico em presídios de segurança máxima.

Há motivos para se questionar a versão oficial? Independentemente da resposta, certo é que a imprensa não se preocupa nessa cobertura em esclarecer questões essenciais. Algumas delas: o que os bandidos ganhariam com o fogaréu por toda a cidade e até municípios como Cabo Frio? Se a intenção era realmente deixar o Rio em pânico, por que as ações criminosas restringiram-se a carros e ônibus vazios? Não há imagens dos ataques, antes dos incêndios, em vias monitoradas por câmeras como a Avenida Presidente Vargas? O que dizem as centenas de presos? A ação militar pode promover a expansão das milícias ou das facções criminosas inimigas? Qual o efeito verdadeiro desse combate pontual à criminalidade, que se estende a outras regiões e grupos criminosos do Rio?

A imprensa parece não ter nada a questionar: preferiu assumir irrestritamente a versão oficial. É certo que a dependência dos jornalistas às suas fontes faz parte do extenso rol de fatores que impedem a utópica liberdade de imprensa, que vão do poder dos empresários da comunicação à desregulamentação profissional. A cobertura da chamada guerra contra o crime é o exemplo mais recente da simbiose entre a imprensa e o governo do Rio de Janeiro. Não é à toa que o relações-públicas da Polícia garante aos traficantes que se renderem: “tudo será filmado”.

*Gustavo Maia é jornalista formado pela UFF em 2008, com monografia sobre a criminalização jornalística da pobreza. Atualmente é estudante de Direito e jornalista do Ministério da Saúde. Trabalhou como repórter do Cadernos de Legados dos Jogos de 2016

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